sábado, 28 de setembro de 2013

Paixão pela Vida - Jurgen Moltmann

Apatia é, para os médicos, sinal de doença. O paciente mostra-se esgotado. Desinteressa-se. Desaparecem lhe os sentimentos. Não reage a visitas. Não escuta o que lhe falam. Submerge em fria indiferença.
Acreditamos que a atual apatia indica não apenas a doença da sociedade, mas também dos indivíduos. Diminuiu o interesse pela vida. Já não enfrentamos a realidade com ânimo. Parecemo-nos como os caracóis, fechados na casca para não sofrer. Passamos pela vida entorpecidos, praticamente mortos, não obstante o corpo vivo. Quais são as causas dessa apatia? Por que nossa vida se reduz a essa indiferença, tangendo os limites da morte?
Apatia, originalmente, significava “ausência de sofrimento”. Os povos antigos consideravam-na a mais alta virtude dos deuses e dos homens. Acreditavam que Deus era bom sem qualquer participação no mal. Era perfeito. Não podia sofrer. Era eterno. Não morreria jamais. Era auto-suficiente. Dispensava amigos. Deus, então, na sua plenitude não podia sofrer, caracterizando-se pela suprema apatia. Estava acima de necessidades e impulsos. Acreditavam eles que a felicidade não se definia pela realização dos desejos. Bem ao contrário, era alcançada pelo abandono do que mais ardentemente queremos. Daí a importância de uma vida sem paixão, sem explosão de raiva, mas também sem amor. A verdadeira felicidade pairava acima do sofrimento e da alegria. Os que quisessem alcançar a divindade e a liberdade, ao mesmo tempo, deveriam vencer os desejos, dominar os impulsos e cultivar a apatia.
Nossos valores e ideias, feitores da sociedade contemporânea, não diferem muito dessa antiga atitude. A diferença é que, hoje, a apatia não é buscada voluntariamente, mas nos sobrevém como uma estranha obrigação da qual não conseguimos fugir facilmente. Achamos normal ocupar-nos avidamente em atividades pragmáticas para vencer as necessidades, as dependências e os sofrimentos. Estamos procurando viver uma existência sem sofrimento, alegrias sem dor e comunidade sem conflito. É o que chamamos de felicidade. É o prêmio que recebem os mais ágeis, os mais ativos e os que alcançam sucesso, como se diz. “Como se diz”, porque, realmente, tudo isso não passa de mentira. (...)
Na vida particular perdemos os sentimentos e confundimos as emoções em benefício do sucesso e do trabalho; Ficamos sem condições para o amor ou para a tristeza. Secam-se as nossas lágrimas e os sorrisos que ainda nos restam apenas subsistem pelas injunções da cortesia. Os famintos do Terceiro Mundo não nos afligem “precisam trabalhar, esses vagabundos”. A filosofia de que “só nos realizamos no trabalho” oculta sofrimentos e decepções. Os que confiam nas promessas dos ídolos do trabalho e do sucesso pessoal, poderão, talvez, alcançar uma existência sem dor ou conflito. O preço, entretanto, será amargo. Tranformar-se-ão em seres apáticos, deteriorando-se pouco a pouco, até morrerem mesmo permanecendo vivos. (...)
É assim que vejo a morte moderna. É a vida sem dor, sem paixão, apática. Antigamente ainda nos queixávamos de que não havia muito amor entre as pessoas. Hoje em dia desapareceu até mesmo o amor pela vida. Há pessoas com medo de que o mundo venha acabar por causa da bomba atômica. Há outros que anunciam a morte pela ecologia. Eu, porém, tenho a impressão de que antes disso, vamos todos morrer fulminados pela apatia. “O pior é que a gente vai se acostumando”. Assim como nos acostumamos com a criminalidade crescente nas ruas das grandes cidades, também nos acostumamos com a ameaça atômica. Não obstante, continuamos a pagar grande somas para a construção de material bélico. Costumamo-nos à destruição do meio ambiente, mas continuamos a investir em usinas atômicas. Já nos acostumamos om a morte antes mesmo que ela chegue. Por quê? Porque sem paixão ela vida definha a resistência.
Os que hoje, quiserem viver, precisarão viver conscientemente. Terão que aprender a amar com muita paixão para que não se acostumem com as forças da destruição. Precisarão vencer a própria apatia e se deixar levar pela paixão. (...)
Em discursões religiosas, até mesmo entre os cristãos, podemos ouvir frases como estas “Deus não pode sofrer”, “Deus não pode morrer”, “Deus não tem necessidades”, “Deus não precisa de amigos”. Tenho pena dos que pensam dessa forma, porque transformam o Deus vivo num ídolo morto, um ídolo do seu próprio medo da vida.
O Deus de que fala os homens do Antigo testamento, baseado nas próprias experiências, não é um poder frio e silencioso, no céu, que permanece, auto-suficiente, distribuindo graciosamente esmolas aos súditos. É, bem ao contrário, o Deus apaixonadamente envolvido com a criação, com os homens e com o futuro. Sentimos sua presença no patético expresso em seu amor pela liberdade e no interesse apaixonado pela vida contra a morte. Foi por isso que esse Deus entrou numa aliança com os homens, muito semelhante ao casamento, como relata o Antigo Testamento. Tornou-se vulnerável ao amor. Quando Israel o abandonou e se deixou levar pelos ídolos, sua paixão pela liberdade desse povo fê-lo sofrer. Caminhou ao lado de Israel na direção do exílio, participando de seu sofrimento. Irou-se por causa dos pecados incoerentes do povo. Mas seu desgosto expressava apenas o amor ferido, nada mais.
Quem vive em comunhão com este Deus apaixonado não pode permanecer apático. Determina-se por ele. Sofre com o sofrimento de Deus no mundo, alegra-se com suas alegrias. Unindo-se ao amor de Deus, participa intensamente desses sentimentos. Lembro-me que há alguns anos eu achava esta imagem de Deus demasiadamente humana e até mesmo infantil. Não conseguia entender um Deus que esbravejava de raiva e se mostrava ciumento, ardendo de amor ou se decepcionando. Parecia-me, então, que o Deus dos filósofos estava mais perto da verdade, abstrato e isento de qualquer imagem humana. Entretanto, quanto mais percebo a ação destruidora da abstração sobre a vida, tanto mais entendo o Deus do Antigo Testamento com imensa paixão e dor a transpassar-lhe o coração. Muito me impressionou ouvir alguns judeus a afirmação de que o verdadeiro sofrimento na experiência de Israel perseguido seria o sofrimento de Deus. Deus, pois, sofreu com Israel. Acompanhou o povo no caminho para o Egito; esteve nos campos de concentração, nas câmaras de gás, na morte. Com esta fé o povo foi salvo de auto-destruição  adaptando-se, sempre, às novas situações. Quem descobre na profundidade do próprio sofrimento o sofrimento de Deus, não pode permanecer apático. Resiste e espera. Seu pequeno sofrimento acha sentido no imenso sofrimento de Deus em favor de um mundo livre e salvo.
No centro do Novo Testamento acha-se a história do sofrimento de Cristo. Não a entenderemos se a interpretarmos apenas como um relato a mais na longa história de sofrimentos humanos. Somente a entenderemos na paixão que a tornou possível. Na paixão de Cristo, a paixão de Deus confunde-se com a nossa. Nela eu sinto o amor de Deus e as dores do meu próprio corpo.

Que tem de especial a vida de Jesus? Por que nos chama a atenção? Acredito que somos envolvidos muito mais pela sua grande paixão do que mesmo pelas narrativas de milagres. Que paixão? Não se trata de meros desejos da alma por uma vida sem dores no céu nem de um amor pelo Reino de Deus no além, nem ainda a aspiração pela permanência da vida depois da morte, mas, isso sim, da vontade de viver a plenitude da vida mesmo antes da morte, até mesmo contra a morte que transborda da vida de Jesus. A vida se faz presente onde os doentes são curados, os leprosos aceitos e os pecadores perdoados. Essa vida divina liberta, salva e faz-se presente hoje em nosso meio. (...) Em Jesus encontramos vida. (...) Nessa paixão pela vida vê-se a paixão do próprio Deus, inimigo da morte que deseja a vida e a liberdade, e rejeita a escravidão. A paixão que quer o amor e desconhece a apatia.

*Jürgen Moltmann é um dos principais teólogos luteranos contemporâneos.  Moltmann é o criador da 'Teologia da Esperança', em que desenvolve as idéias da realização do Reino, como promessa fundamental de Deus. Suas principais obras são: Teologia da Esperança; O Deus Crucificado; A Igreja na Força do Espírito; Conversão ao Futuro.

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